Dancing on the kitchen tiles

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Sorrisos em Pasomodo

Logo que cheguei a Pasomodo pensava recomeçar a minha vida. Cheguei nu, humilhado, sofrido. Mas ninguém me conhecia. Digo, os que me feriram não mais podiam me alcançar, estava cercado de desconhecidos, mas estava mais seguro, como nunca havia estado. Às vezes penso que o melhor que fiz foi fugir para lá. Fugir de lá, para cá. Uma cidade pequena, de ar bucólico, onde a vida e os dias passavam devagar, devagarzinho. Sentava no banco da praça e ficava ali, lendo um jornal, por vezes, ou por muitas, lendo nada. Fazendo nada. Gostava de ver que todos me cumprimentavam, sem nem saber quem eu era. Se fosse eu um assassino, sorririam para o assassino, se fosse eu um cavalheiro, sorririam tanto quanto, na mesma intensidade.
Os sorrisos me fascinavam, sempre me despertaram fascínio. Às vezes penso qual é o segredo, a magia de um sorriso. Sua alquimia, tão fascinante, tanto que, ao receber um sorriso, sorrimos de volta... contagia, inebria, engrandece. O simples ato de sorrir me era o mais importante dos gestos. Adoro os sorrisos, são tão brancos, muitas vezes não o são, mas são cercados de uma pureza, de sinceridade. Adoro os sorrisos, mesmo os falsos. São falsos, é verdade, mas embelezam o mundo. Eis então, a coisa que mais me fascina nas moças, e daquela cidade em particular, o sorriso. As dentaduras perfeitas, todas abertas, escancaradas. As mais amareladas, ou as dentuças, nenhuma deixava de sorrir, e todas lindas, alegres, contagiantes.
Era em um circus da praça que a vi pela primeira vez. Uma banda tocava músicas belas, por vezes um pouco sonolentas, confesso, mas muito belas. E belas também dançavam as moças, todas vestindo vestidos de trapos. Disse eu que eram belas? Eram sim, mesmo com trapos. A mais linda de todas, era a que dançava enquanto coloria um painel disposto no chão. Suas mãos encontravam e desencontravam a tela, faziam arcos, suas mãos cheias de tinta, de aquarela, espirravam o branco celestial do chão onde tocava, onde se enrolava. Via aquilo tão imensamente hipnotizado que às vezes pensava estar sozinho na frente dela, e me dava urgência de tocá-la. Quando a vontade dava um passo à frente, minha razão me trazia de volta. Quando estava prestes a chegar mais perto, algo me impedia, por vezes o bandolim, quando era tocado mais vigorosamente, por vezes minha própria desalucinação. E no final, como que para prolongar minha tortura, como se soubesse das minhas maluquices, a moça olhou para o público e sorriu, cansada de pintar o quadro a seus pés.
O quadro ficou exposto no pórtico da praça, para meu infinito desespero. Passava todos os dias por ele, mas não conseguia mira-lo. Tive que mudar meu caminho, trocar de direção. Aquela arte me inspirava e atormentava meu mais profundo ser. Aquele colorido que eu não podia ver, mas que chamava meus olhos sempre que via eu me aproximar, era a lembrança sempre presente daquela dança, daquele sorriso. Passei a sentar-me em frente ao circus todos os dias. Já não queria mais resistir. Todos os dias, do amanhecer ao anoitecer, lá estava eu, postado, esperando por ela. Esperando ver aquele sorriso mais uma vez. E quando ela cruzou o meu caminho, não sorria. O sorriso que eu imaginava, que eu fantasiava, não existia. Corri em seu encalço, a moça se virou e me olhou fixamente nos olhos. Seus olhos, antes tão expressivos e cheios de releituras, agora estavam vazios, seu olhar não me dizia nada. Seu rosto, inchado, se converteu em uma careta ao perceber o meu torpor decepcionado. Assim, ela se foi, e eu fiquei esperando por mais um sorriso seu.
Não desisti da minha espera, todos os dias, no mesmo lugar, no mesmo banco da praça. As pessoas, antes tão simpáticas, não mais sorriam pra mim, mas me viam como um bicho, um reles animal, vestido em trapos, farrapos. Trapos estes não tão belos quanto os das moças. De forma nenhuma eram belos, se o que envolviam era apenas o corpo fétido de um maluco apaixonado. Esperei naquele mesmo lugar, durante dias e dias da minha existência. Em uma tarde outonal em que me dirigia ao meu ponto, vi um cortejo fúnebre passando paralelo a mim. Vi que depositavam em cima do caixão pinturas muito semelhantes àquela exposta no pórtico. Vi pessoas chorando, ouvi o que comentavam.
- Que belo sorriso tinha a moça!
- Belíssimo! A ponto de enlouquecer os homens, loucura que pôs fim a sua loucura.
- Crime? Passional?
- Não, pôs fim a si mesma. Deu fim a loucura que a consumia, e que consumia a todos que se deixavam consumir por ela.
Não podia crer no que ouvia. Boquiaberto, sem reação, parei, no meio da multidão, que passava por mim, mas não sorria. Naquela cidade ninguém mais teve coragem de me dar um sorriso. Derrotado, segui meu caminho, à procura de outros sorrisos e de uma moça louca o bastante para sorrir para mim, todos os dias, o dia inteiro, por toda a minha existência.

(o.O)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

the ballad for the broken hearted

Um exército de corações partidos. Todos, marchando pelas avenidas. Foram reivindicar o paraíso perdido, o coração enlameado, dilacerado. Pediam compaixão de seus amantes, traziam no peito uma mancha negra. Um buraco negro.. Seus tesouros todos espalhados pelo chão, não mais distinguia os bons em meio aos decepados. Ás vezes parava para observá-los. Pareciam almas, perdidas. Gritavam, choravam, pediam de volta os bons momentos roubados, entre lágrimas. Soluços. A agonia crescia. Via por todos os lados formas, vultos, incógnitas. Pessoas perdidas, românticos fracassados. Perdiam-se na nuvem de gente, mas agora apareciam... apareciam para mim, que nunca os tinha percebido. Eu, que via esta cidade cinza, cheia de cinza, cinza, cinza-nulo, preto, branco-nada. Tudo agora parecia escarlate, um púrpura talvez. As cores me pareciam apagadas e vivas ao mesmo tempo. Via tudo em câmera lenta, via esta cidade errada, que errou comigo, que errou com seus soldados, do exército dos corações partidos. Agora, que tivera meu coração árido partido em dois, pela primeira vez os via, todos que passavam por mim como fantasmas. Agora que estou na luta, agora que faço parte do mundo dos desafortunados no amor. Mas pareciam todos felizes, os desventurados, choravam, mas cantavam também. Talvez não fossem tão amargurados assim, aprenderam a remendar. Colaram o band-aid, o curativo assim como eu aprendia a me curar também. Agora, está tudo em paz. Não há música, estou em um filme mudo, em uma cidade muda, em uma gritaria muda. Agora vejo em mim o reflexo, aposentado no amor. Agora, que sou soldado, soldado do amor, sou desertor.