Era eu meio sem ter um eu. Entende? Não? Tudo bem, eu explico. Com 7 anos lá estava , usando as mesmas roupinhas que as minhas coleguinhas de aula, com o mesmo corte de cabelo Chanel que minha mãe fazia há anos, devido à preguiça de me pentear. Não tinha muitos amigos, poucas pessoas me notavam. Não era triste nem nada, mas também não marcava ninguém. Me diga: Qual é criança que tem sua personalidade formada aos 7 anos? Poucas, muito poucas. Enfim, estava eu meio mimetizada no meio de todo mundo, não querendo chamar a atenção. Quando em um belo dia, em mais uma excursão à livraria com minha mãe, descobri algo mágico, um livro, mas não um livro qualquer, um livro que galgou o meu modo de pensar e a minha personalidade tão comum. Ali, conheci o meu clássico, como Ítalo Calvino definiria. A história do garoto que sobreviveu, da Rua dos Alfeneiros, de Hogwarts, expandiu meu pequeno universo. J. K. Rowling mal sabe o quanto ela mudou a minha vida, quanta gente ela influenciou e o quanto. A partir dali, conheci um novo mundo e criei o meu próprio. A verdade é que isso fez com que eu me fechasse ainda mais do mundo ao meu redor, mas e quem disse que eu ligava? Vivia sonhando, fui entrando em tamanho transe que, a um dado momento do percurso, me dei conta de que não poderia mais voltar. Meus sonhos eram povoados por histórias fantásticas, passadas em castelos. Sempre sonhava com uma viagem de trem, vendo os campos, os vales, a região dos lagos. Me imaginava andando por aí de sobretudo, com uma coruja empoleirada no ombro, quiçá sacando uma varinha e conjurando algum feitiço. Fui sempre sonhando com isso, escrevia livros sobre a minha amada ilha, qualquer coisa que viesse de lá era válida. Recortava fotos e informações de revistas de viagem, lia outros livros que citavam os meus tão amados castelos, filmes, alguns que mostravam as casas georgianas que eu achava tão belas. Fui crescendo, e, obviamente, fui me aproximando do chão. Comecei a ver os defeitos que a minha amada terra de sonhos possuía, comecei a me envergonhar das barbáries que eles haviam cometido contra outros, como se eu fosse nativa daquela terra, porque no meu coração, eu era. Ao mesmo tempo, comecei a conhecer melhor a língua deles, a apreciar a literatura tão aclamada. Fui me conectando a cultura, mais ainda do que antes. Comecei a ler os textos que eu tanto amava no original, e me senti mais próxima ainda. Nesses momentos, revivi a infância. Lendo também comecei a conhecer o outro lado, o lado real, os podres todos. Comecei a me encantar por Dickens e por sua crítica social, que me fazia ver que existiam muitos Fagins, Gradgrinds, Quilps etc. Pessoas que se aproveitam dos outros, repressores, e toda a sorte de vilanias que podem existir em uma sociedade. Fui me dando conta de que esses vilões todos não só existiam na literatura para maltratar Oliver Twist e assemelhados. Esses vilões existem na vida real, e em qualquer lugar. E, sabe, me dei conta de que esse meu mundo de sonho ficava tão mais legal com essas pitadas de realidade. Até que decidi ir ver tudo isso com meus próprios olhos. Comprei as passagens, fui bem na cara-dura e com o coração aberto. Cheguei lá e não acreditava inteiramente no que via. Comecei a andar pelas ruas, pegava o metrô, conhecia os pontos turísticos, tudo muito maravilhoso, mas minha ficha ainda não caíra. O frio castigava, o que exigia que eu usasse meu sobretudo, só me faltava a coruja na mão para ter a minha realidade tal e qual o meu sonho, a realização concreta da imagem que vivia no meu imaginário há tantos anos. Vi e senti a discriminação, a violência, todos os grandes defeitos que já imaginava deparar, mas aquilo não me afetava, era a realidade, nua e crua, e tão melhor do que um sonho! Então, decidida a conhecer de perto os locais que inspiraram todos os livros e filmes que tanto me influenciaram, fui lá, comprei meu ticket de trem e me mandei pra Oxfordshire. Ao entrar no trem me arrepiei, era como se um filme da minha infância estivesse em exibição na minha frente. Me sentei ao lado da janela e me perdi no tempo observando a vista que sumia rapidamente a medida que o trem se movimentava. Quando cheguei, depois de muito andar por ruelas estreitas e por prédio antigos, me deparei com o prédio da universidade dali. Quando vi aquilo, eu fiquei paralisada, e uma onda de emoção me varreu de cima a baixo, e eu chorei. Confesso, chorei. Regressei à minha infância, totalmente. À minha frente, o cenário perfeito de meus sonhos, da minha imaginação, de todas as descrições de livros, tudo real. Me sentei na grama, senti o sol do meio-dia bater no meu rosto, e sorri, desejando ficar ali pra sempre, desejando nunca mais acordar de meu sonho.