Sorrisos em Pasomodo
Logo que cheguei a Pasomodo pensava recomeçar a minha vida. Cheguei nu, humilhado, sofrido. Mas ninguém me conhecia. Digo, os que me feriram não mais podiam me alcançar, estava cercado de desconhecidos, mas estava mais seguro, como nunca havia estado. Às vezes penso que o melhor que fiz foi fugir para lá. Fugir de lá, para cá. Uma cidade pequena, de ar bucólico, onde a vida e os dias passavam devagar, devagarzinho. Sentava no banco da praça e ficava ali, lendo um jornal, por vezes, ou por muitas, lendo nada. Fazendo nada. Gostava de ver que todos me cumprimentavam, sem nem saber quem eu era. Se fosse eu um assassino, sorririam para o assassino, se fosse eu um cavalheiro, sorririam tanto quanto, na mesma intensidade.
Os sorrisos me fascinavam, sempre me despertaram fascínio. Às vezes penso qual é o segredo, a magia de um sorriso. Sua alquimia, tão fascinante, tanto que, ao receber um sorriso, sorrimos de volta... contagia, inebria, engrandece. O simples ato de sorrir me era o mais importante dos gestos. Adoro os sorrisos, são tão brancos, muitas vezes não o são, mas são cercados de uma pureza, de sinceridade. Adoro os sorrisos, mesmo os falsos. São falsos, é verdade, mas embelezam o mundo. Eis então, a coisa que mais me fascina nas moças, e daquela cidade em particular, o sorriso. As dentaduras perfeitas, todas abertas, escancaradas. As mais amareladas, ou as dentuças, nenhuma deixava de sorrir, e todas lindas, alegres, contagiantes.
Era em um circus da praça que a vi pela primeira vez. Uma banda tocava músicas belas, por vezes um pouco sonolentas, confesso, mas muito belas. E belas também dançavam as moças, todas vestindo vestidos de trapos. Disse eu que eram belas? Eram sim, mesmo com trapos. A mais linda de todas, era a que dançava enquanto coloria um painel disposto no chão. Suas mãos encontravam e desencontravam a tela, faziam arcos, suas mãos cheias de tinta, de aquarela, espirravam o branco celestial do chão onde tocava, onde se enrolava. Via aquilo tão imensamente hipnotizado que às vezes pensava estar sozinho na frente dela, e me dava urgência de tocá-la. Quando a vontade dava um passo à frente, minha razão me trazia de volta. Quando estava prestes a chegar mais perto, algo me impedia, por vezes o bandolim, quando era tocado mais vigorosamente, por vezes minha própria desalucinação. E no final, como que para prolongar minha tortura, como se soubesse das minhas maluquices, a moça olhou para o público e sorriu, cansada de pintar o quadro a seus pés.
O quadro ficou exposto no pórtico da praça, para meu infinito desespero. Passava todos os dias por ele, mas não conseguia mira-lo. Tive que mudar meu caminho, trocar de direção. Aquela arte me inspirava e atormentava meu mais profundo ser. Aquele colorido que eu não podia ver, mas que chamava meus olhos sempre que via eu me aproximar, era a lembrança sempre presente daquela dança, daquele sorriso. Passei a sentar-me em frente ao circus todos os dias. Já não queria mais resistir. Todos os dias, do amanhecer ao anoitecer, lá estava eu, postado, esperando por ela. Esperando ver aquele sorriso mais uma vez. E quando ela cruzou o meu caminho, não sorria. O sorriso que eu imaginava, que eu fantasiava, não existia. Corri em seu encalço, a moça se virou e me olhou fixamente nos olhos. Seus olhos, antes tão expressivos e cheios de releituras, agora estavam vazios, seu olhar não me dizia nada. Seu rosto, inchado, se converteu em uma careta ao perceber o meu torpor decepcionado. Assim, ela se foi, e eu fiquei esperando por mais um sorriso seu.
Não desisti da minha espera, todos os dias, no mesmo lugar, no mesmo banco da praça. As pessoas, antes tão simpáticas, não mais sorriam pra mim, mas me viam como um bicho, um reles animal, vestido em trapos, farrapos. Trapos estes não tão belos quanto os das moças. De forma nenhuma eram belos, se o que envolviam era apenas o corpo fétido de um maluco apaixonado. Esperei naquele mesmo lugar, durante dias e dias da minha existência. Em uma tarde outonal em que me dirigia ao meu ponto, vi um cortejo fúnebre passando paralelo a mim. Vi que depositavam em cima do caixão pinturas muito semelhantes àquela exposta no pórtico. Vi pessoas chorando, ouvi o que comentavam.
- Que belo sorriso tinha a moça!
- Belíssimo! A ponto de enlouquecer os homens, loucura que pôs fim a sua loucura.
- Crime? Passional?
- Não, pôs fim a si mesma. Deu fim a loucura que a consumia, e que consumia a todos que se deixavam consumir por ela.
Não podia crer no que ouvia. Boquiaberto, sem reação, parei, no meio da multidão, que passava por mim, mas não sorria. Naquela cidade ninguém mais teve coragem de me dar um sorriso. Derrotado, segui meu caminho, à procura de outros sorrisos e de uma moça louca o bastante para sorrir para mim, todos os dias, o dia inteiro, por toda a minha existência.
(o.O)
4 Comentários:
O.o [2]
tá tri!
quando li a parte da moça pintando no chão, lembrei da abertura das Olimpíadas.
sim, comentário supérfluo.
gostei, gostei.
em comum com a minha 'poesia' ;D
beijocas
Quando me dão um sorriso eu nem sempre sorrio de volta, mas ao menos dá vontade.
Gostei da arte, da dança, da pintura no chão... muito bom!!
Pra constar: teus melores textos são os que terminam com o (o.O).
Belo como um sorriso triste.
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